Cobrança e opressão: doença na certa!

Um paciente que atendi e representa muito bem o stress vivido pelas crianças foi o Marcio. Esse garoto deve estar agora com 9 anos, mas eu o conheci aos 5 anos de idade. Na época fui procurado apenas para acompanhar seu desenvolvimento, o qual, segundo seus pais era “insatisfatório”.

E não apenas fisicamente como “Ele todo não está se desenvolvendo direito, doutor!”. Eram as palavras de seu pai, um executivo multinacional. Sua mãe não trabalha fora de casa, mas segundo ela: “essa criança me dá mais trabalho do que todos os empregos que poderia arrumar!”.

Quando bebê esse menino tinha cólicas terríveis, não dormia, nem do meu leite ele conseguia mamar! Esse menino ficava doente todo mês e vivia em médicos, tomando antibióticos fortes”, dizia sua mãe (alguém já viu antibiótico fraquinho?). “não pára quieto, não obedece, e não respeita ninguém!”

Naquela altura do campeonato, até eu já estava meio angustiado. Aquele menino tinha 5 anos, ouvia tudo com uma cara que parecia estar dizendo, “eu sou em fracasso, você pode me ajudar?”.

Na consulta inicial, que levou mais de uma hora e meia, eu e o Márcio descobrimos que ele não era muito valorizado, estava sempre agindo errado, aquém das expectativas, e para piorar tudo,estava “empatando” a vida de sua mãe e trazendo muitos aborrecimentos a seu pai.

Em relação às doenças físicas, apenas seu sistema imunológico e seu intestino não funcionavam direito. Já sua pele funcionava demais e dela surgiam “feridas mal-cheirosas” (a mãe falava essas coisas e Márcio ia se encolhendo na cadeira de vergonha; afinal, estávamos nos conhecendo e seu currículo era de assustar).

Mas o pior era que ele não se concentrava nos estudos, não fazia as tarefas que a professora pedia, nem sabia juntar as letras ainda. Ultimamente até tinha começado a gaguejar.

O pai olhou para o filho com um indisfarçável ar de pena e falou à sua mulher: “conta para o doutor o que ele faz de noite!”. “Pois é doutor, ele faz um dengo na hora de ir dormir, diz que tem medo de bicho, de monstro, de fantasma, e deu agora para voltar a fazer xixi em meus lençóis” (perguntei se ele dormia com os pais no quarto, mas não: os “meus lençóis” apenas identificavam quem havia comprado).

Comecei a trabalhar com essa família. Acho que me dediquei mais à mãe do que ao filho. Pedi para vê-la em consulta e, depois de muita insistência, a convenci a iniciar uma psicoterapia.

Eu tinha a sensação de que era ela que não estava satisfeita consigo mesma e descarregava suas frustrações nos erros e nas dificuldades do filho. Não fazia por querer,  nem ao menos se dava conta do processo.

Seu marido também teve a oportunidade de me ouvir em uma consulta, na qual veio apenas para buscar os resultados de uns exames, que deveria conversar mais com o filho e procurar estabelecer com ele uma parceria de resultados como, provavelmente, fazia em sua empresa, na qual estava ciente de que a melhor forma de obter resultados positivos de seus colaboradores, era incentivando mais e criticando menos o desempenho deles.

Não era um casal fácil. As vezes, chego a pensar que assim como é exigida, “habilitação para dirigir” a mesma exigência deveria ser feita para “ter filhos e educá-los”. Aí percebo que os acidentes de transito e o desrespeito com os pedestres continuam em alta, apesar de tal “carteira de motorista”, e chego a conclusão de que cada família tem de passar pelo processo sozinha, causando o mínimo de acidente possível. Todos ao menos são bem-intencionados.

Pude constatar que Marcio era um garoto tão normal quanto os Tiagos, Brunos e Gabrielas que atendo diariamente. Seu sistema imunológico vai bem e ouso afirmar que sempre esteve saudável.

Acredito apenas que muitos colegas que me antecederam devem ter achado mais conveniente não enfrentar esse “diagnóstico fechado” que os pais já traziam de baixa imunidade e perpetuavam assim sua história de antibióticos “fortes”.

Seu sono melhorou, e os monstros ficaram mais mansos depois que seus pais mudaram um pouco sua atitude “cobradora” e “insatisfeita”. Não acredito sequer que o remédio que lhe dei era o de fundo. Não, ele melhorou porque o stress diminuiu. Na escola ele está mais participativo.

E aconteceu o que muitas vezes acontece nesses casos. Os pais não aparecem mais, pois as “doenças” desaparecem e o doutor deixa de ser necessário. Ainda bem. Mas às vezes dá saudades.